A dimensão humana da docência
Tânia Ramos Fortuna
Postado pela aluna Cleize Trece Valadares, 3º ano de Pedagogia, turma: 1.
Reconhecer a dimensão humana da docência, incluindo as dificuldades do cotidiano escolar, é admitir a presença e a força dos afetos na determinação da identidade do professor e na sua atuação profissional
No poema Aluna, do livro Vaga música, Cecília Meirelles fala, com melancolia, de uma humana docência que se perde ou morre. Será este, necessariamente, seu destino? Acredito que a compreensão da dimensão humana da docência pode contribuir para desviá-la desse dramático desfecho, garantindo ao professor a efetivação de sua função formativa na perspectiva da promoção do crescimento e do desenvolvimento global de seus alunos. Reconhecer a dimensão humana da docência é admitir a presença e a força dos afetos na determinação da identidade do professor e na sua atuação profissional. Contudo, há uma tendência a exorcizar a abordagem desse assunto por parte daqueles que pretendem uma análise dita "científica" dos vínculos profissionais. Análises como essas ancoram-se, muitas vezes sem o saber, em uma perspectiva positivista da ciência, na qual se acredita que a isenção e a neutralidade são obtidas pela execração das paixões, atingindo, assim, a imparcialidade do conhecimento. Tais análises são tributárias de uma verdadeira revolução afetiva que acompanhou a revolução industrial e que culminou na expulsão do afeto do mundo do trabalho e na sua segregação ao ambiente doméstico, íntimo. Resultam igualmente do progressivo abandono e da deturpação aos quais foi condenada a concepção arcaica de paixão, do grego pathos, cujo significado era estar atraído pela vida. Apaixonado, para o pensamento vigente na Grécia antiga, era aquele que se sentia atraído pela vida e que demonstrava alegria de viver, ao passo que doente era o apathos, isto é, quem rejeitava a vida. Com o advir da tradição judaico-cristã, a forma apaixonada de se expressar e viver passou a ser sinônimo de comportamento indesejado, doentio, influenciando não só a ciência médica, mas estendendo-se também às demais ciências (Salis, 2004). Ora, o estudo do esgotamento e do estresse profissional expresso em uma espécie de "mal-estar docente", a caracterização do "bom" professor, a identificação e a compreensão dos professores apaixonados pelo que fazem e a própria constituição do par educativo são inelutavelmente atravessados pelos afetos. A educação comporta uma forte dimensão afetiva que, não sendo a única nem a mais importante, é tão definitiva quanto as demais dimensões - socioeconômica, ideológica, filosófica, entre outras - na consumação de seus objetivos, por mais diversos e desencontrados que sejam ao longo da história do homem. Sua base comum é a aspiração à transformação da condição humana. Proponho neste artigo, através da análise de depoimentos literários sobre a afetividade do educador, um exercício de compreensão da dimensão afetiva da docência. AFETO E TRABALHO EM EDUCAÇÃOÉ indubitável o fato de que todo trabalho envolve algum investimento afetivo por parte do trabalhador, tanto na relação estabelecida com os outros quanto na relação estabelecida com o produto do trabalho. No caso do professor, porém, a relação afetiva é parte obrigatória do próprio exercício do trabalho, pois é mediante o estabelecimento de vínculos afetivos que ocorre o processo de ensino-aprendizagem (Codo, 1999). Em sua ausência, um "desastre" pedagógico irrompe, como relata Lya Luft (2002, p. 77): "A primeira vez que tentaram me botar no jardim de infância foi um desastre. A professora devia ter uma tolerância vagamente aborrecida comigo, que entrei e saí chorando do primeiro ao último dia e tinha dela um irremediável temor. Nenhuma sensação de afeto, nenhuma ternura circulava entre nós".São os vínculos afetivos que possibilitam a relação transferencial, tão exaltada pela psicanálise, responsável por converter o desejo de ensinar e o desejo de aprender em conhecimento, através da autorização mútua que se opera entre sujeitos que ensinam e aprendem. Afinal, um conteúdo aprendido só faz sentido para alguém caso esse conteúdo relacione-se com sua verdade inconsciente, isto é, com seus desejos, com um saber prévio. Quando o professor admite o saber do aluno e os questionamentos decorrentes desse saber, seu trabalho é no sentido de ir ao encontro dessas perguntas que o interrogam mais fundo, a respeito do seu lugar, sobre o que faz ali, sobre suas próprias verdades. Sem poder gerar o desejo de saber, o professor pode, em contrapartida, com as interrogações que ele formula em resposta aos anseios do aluno, instaurar um vão, um corte, com um matiz de angústia, que motiva o aluno a ir mais longe, mas que também mantém o próprio professor na posição de querer fazer aprender (Kupfer, 1990). Ambos, então, desejam saber. Jorge Luis Borges (1970) sintetiza essa idéia em seu ensaio autobiográfico ao enunciar seu principal objetivo como professor: o prazer de estudar, não a vaidade de ensinar. J.-B. Pontalis (1989), o grande psicanalista francês, oferece em sua biografia um exemplo do papel do desejo de saber do professor no desencadeamento do desejo de aprender do aluno ao mencionar o comentário de um aluno sobre as aulas de determinado professor: mesmo interessantes, persistia uma sensação de incômodo, pois o professor dava a impressão de que não acreditava no que ensinava. Albert Camus (1994), ao referir-se às aulas de seu professor da escola primária, diz que eram sempre interessantes pelo simples fato de que ele era apaixonado pelo próprio trabalho. Contudo, os professores não são iguais. Ao lembrar-se de suas experiências escolares em Zurique, Elias Canetti (1987, p. 174) alude a essa multiplicidade:"A multiplicidade dos professores era surpreendente; é a primeira diversidade de que se é consciente na vida. Que eles ficassem por tanto tempo parados à nossa frente, expostos em cada um de seus movimentos, em incessante observação, hora após hora o verdadeiro objeto de nosso interesse, sem poderem se afastar durante um tempo precisamente delimitado; a sua superioridade, que não queremos reconhecer de uma vez por todas e que nos torna perspicazes, críticos e maliciosos (...); também o mistério que envolve sua vida fora da escola, quando não estão à nossa frente como atores, representando a si próprios; e mais ainda a alternância de personagens, um após outro, no mesmo papel, no mesmo lugar e com a mesma intenção, portanto eminentemente comparáveis - tudo isso, em seu efeito conjunto, é outra escola, bem diferente da escola formal, uma escola em que se ensina a diversidade dos seres humanos; se a tomarmos um pouco a sério, resulta a primeira escola em que conscientemente estudamos o homem".Se essas múltiplas identificações ampliam a influência do professor sobre o aluno, conforme o número de professores com os quais ele tem contato, igualmente repartem a responsabilidade sobre essa mesma influência, relativizando-a. É preciso, afinal, não perder de vista a autonomia, ainda que relativa, porque refém do inconsciente, da qual a autorização presente na relação transferencial depende e que determina uma configuração vincular do par educativo sempre original. Do educador também se espera o domínio de seus afetos, na forma de consciência de sentimentos, tais como simpatia ou antipatia, identificação ou contra-identificação, admiração ou desprezo, e sua canalização positiva, a serviço de bem ensinar. Ele aprende, como crê Kupfer (1990), que pode organizar seu saber, mas que não tem controle sobre os efeitos que produz em seus alunos e que não conhece muitas das repercussões inconscientes dos seus ensinamentos e da sua presença nesses alunos.Em uma carta dirigida a Camus, é seu próprio professor quem fornece um testemunho desse domínio de afetos: "Creio, durante toda a minha carreira, ter respeitado aquilo que é mais sagrado na criança: o direito de procurar a sua verdade. Amei todos vocês e creio ter feito todo o possível para não manifestar minhas idéias e influenciar, assim, sua jovem inteligência" (Camus, 1994, p. 310).A própria realização profissional depende de um quantum de afeto investido no projeto de vida que o trabalho supõe. Sim, porque se é verdade que, na contemporaneidade, nas sociedades capitalistas, para a maioria da população o trabalho ocupa um lugar central nos projetos de vida, quanto mais não seja porque dele se depende para sobreviver, é igualmente verdade que o trabalho implica um projeto de vida, na medida em que ordena as relações, os tempos e os espaços de existência. O trabalho, a um só tempo, é definido e define o estilo de vida do trabalhador.Mas, afinal, o que significa "afeto"? Derivada do latim affectu, essa palavra diz respeito àquilo que toca, atinge, afeta; para a psicologia, é um fenômeno psíquico que se manifesta sob a forma de emoções, sentimentos e paixões. Sem ignorar os demais fatores que incidem sobre o processo educacional, porém, ao contrário, combinando-se com eles, a compreensão da dinâmica dos afetos do professor e sua influência na trajetória profissional podem auxiliar na garantia da eficácia profissional. Além disso, o reconhecimento do papel das emoções nas práticas profissionais pode ajudar na valorização dos professores a partir da identificação e do resgate do que têm de precioso dentro de si, o que, por sua vez, pode constituir-se em importante aliado na luta por um lugar mais justo na sociedade (Silva, 1994). REENCONTRAR O SENTIDO DE SER PROFESSOREm sua autobiografia intelectual, há uma passagem em que Morin (2000, p. 178) descreve o momento em que se encontrava: "era devorado pelo trabalho devorando a vida. Em meu trabalho, jogava meus interesses, minhas paixões e minha vida. O amor alimentava minha vida, que alimentava meu trabalho". Quem sabe não é essa a "fórmula mágica" para evitar que a humana docência, enquanto inventa um ofício, seja perdida ou venha a morrer? Nas profundezas de si mesmo, o professor pode encontrar o sentido da vida e nela o sentido do seu trabalho, no qual coloca seus afetos, daí extraindo a força mesma de viver e trabalhar. Religando - para usar esse conceito tão caro ao pensamento moriniano - trabalho docente e vida, não para reduzir um ao outro, mas para restituir a unidade orgânica desses elementos, pode, então, (re)encontrar o sentido de ser professor, implicando-se na tarefa de ensinar para fazer aprender e aprender também. Uma nova compreensão da profissão docente - tanto no sentido ontológico, porque do âmbito do ser professor, quanto no epistemológico, porque ligado aos saberes docentes - pode advir justamente do estudo da vida afetiva dos educadores.
Tânia Ramos Fortuna é professora da Faculdade de Educação da UFRGS e coordenadora geral do programa de extensão universitária Quem quer brincar?quemquerbrincar@ufrgs.br
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