terça-feira, 12 de junho de 2007

Postado pela aluna Ana Cláudia Fernandes Machado de Souza

A escola ignora quem não consegue aprender

Só 15% dos problemas dos alunos correspondem a distúrbios orgânicos, diz o fonoaudiólogo
Márcio Ferrari

Se os índices de fracasso escolar brasileiros na tentativa de alfabetização se devessem a distúrbios dos alunos, poderíamos crer numa epidemia. O que ocorre, porém, é uma tendência perversa do sistema de ensino que leva os educadores a não distinguir entre as próprias limitações e as dos estudantes. A necessidade de esclarecer da melhor forma possível as dúvidas dos pais que o procuram para saber se os filhos sofrem de problemas de aprendizagem levou o fonoaudiólogo Jaime Luiz Zorzi a extrapolar os conhecimentos exclusivos da profissão que escolheu. Assim, ele começou a relacionar as informações sobre o funcionamento do organismo humano com uma preocupação quanto à prática de ensino no país. Zorzi graduou-se em Fonoaudiologia na Universidade Estadual de Campinas e, nos cursos de mestrado, doutorado e pós-doutorado que se seguiram, tomou o caminho da Educação, em particular o da alfabetização. Entre as questões relacionadas a essa área, especializou-se nas de ortografia. Ele é diretor do Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica (Cefac), em São Paulo, ao qual se liga uma clínica-escola que atende jovens com problemas de desenvolvimento da escrita. Com essa atuação, Zorzi tornou-se um observador privilegiado do que há de mito e verdade nas dificuldades de aprendizagem dos estudantes brasileiros, como ele relata na entrevista a seguir.
Como o senhor passou de uma perspectiva clínica do aprendizado da escrita para uma compreensão social?

JAIME LUIZ ZORZI - Muitas pessoas procuram um fonoaudiólogo por causa de problemas ligados à aprendizagem. Isso já nos leva, naturalmente, a entrar em contato com a escola. É fácil perceber que não se trata apenas de uma questão clínica. Na realidade, os verdadeiros distúrbios de aprendizagem correspondem a uma minoria e os falsos têm mais a ver com as circunstâncias da Educação oferecida. Muitas vezes falta ajuste entre as características do aluno e o método proposto em sala de aula.

As causas propriamente orgânicas respondem por que parcela do total de alunos com dificuldades?

ZORZI - Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, entre 10% e 15% do total de crianças com problemas de aprendizagem apresentam distúrbios orgânicos. Incluem-se aí quadros importantes de deficiências mentais, auditivas, motoras, visuais e múltiplas, além de casos mais pontuais, como a dislexia. Mas o índice de fracasso escolar ultrapassa15%, atingindo 40% ou mais. E há ainda os estudantes que passam de ano sem ter aprendido corretamente. Nossa experiência de atendimento, por outro lado, mostra que sempre há resposta em condições favoráveis de aprendizagem.

Que exames indicam ou descartam limitações intrínsecas?

ZORZI - Idealmente, um diagnóstico desse tipo deveria ser feito por uma equipe multiprofissional, nas áreas psicológica, neuropsicológica, fonoaudiológica e psicopedagógica. Aí temos um conjunto mais ou menos fechado de exames tradicionais. Há alguns opcionais, dependendo do caso, como os psiquiátricos e mesmo uma radiografia ou um eletroencefalograma. Mas uma visão de equipe só é oferecida por serviços particulares (para quem tem condições de pagar) ou pelas universidades. O que costuma ocorrer é a criança ser levada a um profissional e ele solicitar a ajuda de outro. A família poder vir a escolher alguém sem a especialização requerida, ou que divirja da abordagem do primeiro, ou até interromper o processo. Em geral, infelizmente, não se presta a atenção devida ao caso e isso tem drásticas conseqüências sociais e emocionais.

É possível fazer um levantamento geral das dificuldades apresentadas pelos alunos?

ZORZI - Podemos classificá-los em quatro grandes grupos. Há aqueles que chegam à 1a série com uma condição bastante favorável de aprendizagem, porque têm bom nível de informação, tiveram oportunidade de freqüentar pré-escola e são de famílias cujos pais fazem uso intenso de leitura e escrita. Nesse caso, a função do professor é apenas dar continuidade ao processo. Um segundo grupo é formado pelos que vêm de ambientes que propiciaram um bom preparo, mas que não se envolveram muito; estes já representam um problema um pouco maior, porque precisam ser motivados. O terceiro corresponde aos que não tiveram experiências prévias nem uma família que pudesse ajudá-los de alguma maneira. Finalmente, há os que têm dificuldades intrínsecas. Os integrantes dos dois últimos perfis constituem os grandes desafios do ensino e chegam a mais de 50% da população escolar no Brasil.

Quais são os conhecimentos sobre o processo de alfabetização que o professor precisa ter?

ZORZI - A situação de aprendizado reúne três elementos. De um lado, quem aprende. Depois, o que será ensinado: uma língua com características muito peculiares. No português, a correspondência entre sons e letras é complexa. Não se trata de estudar profundamente a gramática, mas de compreender o que é uma escrita alfabética, que habilidades requer, os graus de complexidade que a língua impõe. O terceiro vértice do triângulo é o método, definido pela relação entre o aprendiz e a língua e subordinando-se às características de ambos.

Qual a relação entre a aquisição da escrita e a fala?

ZORZI - Aprender a falar significa dominar todo o sistema de uma língua e normalmente isso se faz de modo mais ou menos automático, sem se dar conta de como acontece. As escritas alfabéticas partiram de certas propriedades da fala, como a percepção de que uma palavra pode ser decomposta em unidades menores, as sílabas, e de que estas se reduzem a elementos menores ainda, os fonemas. Isso levou à idéia de que tais sons são representados por símbolos, as letras. Portanto, o ato de escrever exige refletir sobre a estrutura sonora das palavras, formada por um número reduzido de fonemas. A relação entre o som e os símbolos, no entanto, nem sempre se apresenta de forma precisa. Vários problemas de aprendizagem da linguagem escrita têm origem no desenvolvimento da fala.

O senhor pode dar um exemplo?

ZORZI - Algumas crianças pequenas sinalizam que falar não será uma tarefa muito fácil. Começam a desenvolver a linguagem um pouco mais tarde do que a média. Muitas vezes passam a produzir os fonemas de maneira imperfeita; em outras, têm dificuldade na apreensão ou na ampliação do vocabulário, na habilidade de formar frases ou de dar conta de situações em que há muita informação a ser decodificada. Descartadas dificuldades cognitivas, conclui-se que há um distúrbio específico de linguagem. São fortes candidatas a problemas de leitura e escrita. Daí a importância de intervir quando surgem os primeiros sinais.

Pode-se dizer que o aprendizado da fala é inato e que o da escrita é uma construção social?

ZORZI - Perfeitamente. É claro que dependemos fortemente do entorno social para processar a linguagem, mas nascemos para falar e não necessariamente para escrever. Tanto que há culturas letradas e não-letradas. O cérebro humano produziu a escrita porque tem capacidade de trabalhar com símbolos de uma determinada natureza, mas nada comprova a existência de uma inscrição genética que o incline para isso. Alguns pesquisadores acham que isso será provado, mas me parece apenas especulação.

Costuma-se considerar o ler e o escrever como habilidades muito ligadas, como se saber uma naturalmente levasse a dominar outra. O vínculo é tão forte assim?

ZORZI - Normalmente ensinam-se as duas coisas juntas, porém as pesquisas mostram que os processos são diferentes. Quando se lê, é preciso transformar um conjunto de letras numa palavra e buscar o significado dela no nosso vocabulário interno. O trabalho de fazer a codificação foi de quem escreveu. O nosso é de desfazer. Quando se escreve é o contrário: parte-se do significado, encontra-se a palavra que o simboliza, pensa-se na estrutura sonora e aí se faz a correspondência com as letras. São dois percursos complementares, mas que demandam habilidades e procedimentos distintos. Há quem saiba escrever algumas coisas, mas tem dificuldade de lê-las e vice-versa.

Existem pessoas, mesmo adultas, que lêem com freqüência, mas erram muito a ortografia...

ZORZI - Isso é comum. Há alguns anos, fizemos uma pesquisa motivada justamente pela idéia de que há relação entre as duas coisas. Entrevistamos 300 crianças e as caracterizamos em três perfis: leitores muito ativos, ativos e pouco ativos. Foi feito um ditado e pedido um texto em que contassem uma história. Então conduzimos um levantamento ortográfico e chegamos também a três perfis, por níveis de incorreções. Havia leitores muito ativos que erravam muito e também o inverso. O segredo para escrever bem está na prática constante e não apenas na leitura.

A memória visual desempenha um papel importante na assimilação da ortografia?

ZORZI - Memória não é exatamente aquilo que vemos, mas o que acreditamos ter visto. Tomemos, por exemplo, um estudante que invariavelmente usa apenas um esse em palavras como “passarinho” e “cabeça”. Para ele, funciona assim: ao mesmo som, corresponde a mesma letra. Se indicarmos a leitura de um texto em que apareçam essas palavras grafadas corretamente e em seguida pedirmos para esse aluno escrevê-las, ele continuará usando apenas um esse. É que existe uma memória de trabalho, que guarda informações por uma fração muito pequena de tempo. Quando ele vai escrever, é ativada a memória antiga, com aquela regra já consolidada. Os professores costumavam tentar corrigir erros de ortografia mandando o aluno copiar várias vezes a mesma palavra. Na primeira e na segunda linha, ele realmente reproduz a grafia certa; da terceira em diante, passa a escrever espontaneamente, usando a memória já estabelecida. Portanto, o exercício simplesmente não funciona. Ou se leva a fazer descobertas ou os mecanismos da escrita não são compreendidos e o erro tende a ser persistente.

Crianças com dificuldades têm habilidades que não são valorizadas pela escola?

ZORZI - Sim. Elas costumam ser avaliadas pelo ponto fraco e não pelo forte. O sistema se baseia naquilo que o sujeito não é, não tem e não faz. Além de valorizar outras habilidades, devemos ficar atentos aos pequenos ganhos. Por exemplo: um aluno que não tinha a mínima idéia do que era escrever começa a notar a existência de sílabas e utiliza uma letra para simbolizar cada uma. Isso acontece bastante, mas para muitas pessoas pode parecer absurdo. Se você concordar que foi feita uma associação possível e tentar levá-lo a avançar, ele vai sentir-se aprovado e fazer novas descobertas. Uma atitude desse tipo às vezes tem resultados mais eficientes do que a aplicação de um exercício específico.

A incidência da dislexia é preocupante?

ZORZI - Essa é uma questão muito importante, independentemente do número de pessoas afetadas. Às vezes, pequenos problemas se tornam grandes porque são muito evidentes e repercutem profundamente na vida diária. Alguns adultos que me procuram têm sucesso profissional, mas não escrevem em público, temendo ser ridicularizados. Isso causa uma tensão permanente: o sujeito tem trauma de lápis e caneta. Não é pouca coisa. Muitos desistem de estudar, o que pode resultar em distúrbios sociais e comportamentais. A dislexia ganhou dimensão de doença e, apesar de não ser, pode desequilibrar a vida escolar de uma pessoa.

E quanto ao transtorno do déficit de atenção?

ZORZI - Esse problema é mais subjetivo, depende de quem avalia. O déficit de atenção é uma condição permanente. Trata-se de uma dificuldade para se concentrar em qualquer hora e lugar mesmo quando se está fazendo algo prazeroso. Se surge um “déficit de atenção seletivo” relacionado às coisas da escola, é muito mais provável que estejamos falando de desmotivação e falta de interesse. Imagine uma sala de aula em que o professor trabalha um conteúdo que requer leitura e escrita, mas o aluno não lê nem escreve ou faz isso de modo muito precário. Dificilmente ele vai ficar atento, porque não assimila o que está sendo apresentado. Existem os jovens hiperativos ou com déficit de atenção, mas, em geral, o comportamento desatento está ligado ao que as escolas e professores oferecem em termos de ensino.

Quer saber mais?

Bibliografia
• A Intervenção Fonoaudiológica nas Alterações da Linguagem Infantil, Jaime Luiz Zorzi, 154 págs., Ed. Revinter, tel. (21) 2563-9700, 39 reais
• Aprender a Escrever: A Apropriação do Sistema Ortográfico, Jaime Luiz Zorzi, 116 págs., Ed. Artmed, tel. 0800-7033444, 38 reais
• Aprendizagem e Distúrbios da Linguagem Escrita, Jaime Luiz Zorzi, 176 págs., Ed. Artmed, 38 reais
Contato
• Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica, R. Caiová, 664, 05018-000, São Paulo, tel. (11) 3675-1677

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